recibo é, antes de mais nada e contudo, uma proposição artística. Experimento editorial impresso que articula diferentes formatos, categorias, modos de produção, edição e circulação desde sua gênese, renovando e alargando suas possibilidades de significação a cada nova edição.

Projeto iniciado em 2002 na cidade de Florianópolis, pelo artista catarinense Roberto Traplev, recibo pode ser inicialmente categorizada, enquanto projeto editorial, como revista, dado que se trata de uma publicação impressa e periódica, que aborda temáticas diversificadas por um viés artístico, de caráter crítico, reflexivo e propositivo. Contando com a participação de diferentes autores e colaboradores, entre artistas visuais, designers, curadores, críticos e editores, recibo articula de forma experimental modos diversos de criação e edição, que reverberam sobre sua forma e conteúdo.

É curioso notar que o próprio Traplev, enquanto idealizador e editor, tenciona desde a escolha do título a natureza deste periódico, problematizando o gênero revista, enquanto categoria editorial, conforme podemos observar nas descrições dos números de recibo disponíveis na plataforma online issuu . Nos pequenos textos de apresentação que acompanham cada uma das edições, Traplev sempre se refere ao recibo, e não à recibo, adotando o substantivo masculino para remeter ao documento escrito, em que alguém, pessoa ou empresa, atesta ter recebido algo, ali especificado, de outrem.

A recibo, enquanto revista impressa e periódica, pode ser também o recibo, documento escrito que confirma determinada entrega, evidenciando um posicionamento crítico, ambíguo e ambivalente, em relação às categorias tradicionalmente empregadas na definição de projetos editoriais. É interessante perceber como as duas acepções possíveis ao termo são articuladas num mesmo objeto impresso: a recibo, enquanto revista, pressupõe um sistema de distribuição e circulação que, por sua vez, objetiva o recebimento deste material pelo público. Ao alcançar o leitor, o objeto impresso em si, a revista recibo, se presta também enquanto evidência objetiva de acesso, podendo ser encarada simultaneamente enquanto atestado e dispositivo do recebimento em si, do contato com o leitor.

Ao assumir distribuição e circulação como pilares para a existência e continuidade de um periódico, o leitor que tem em mãos uma recibo, tem também um recibo, afirmando seu papel de receptor ao situar-se na ponta de uma cadeia produtiva projetada por aquele que emite, que propõe a inserção e disseminação de determinado conteúdo simbólico num dado contexto.

Ainda sobre o título, é interessante observar que o nome recibo sempre surge atrelado a uma segunda informação, espécie de adendo que identifica e caracteriza os números da publicação, refletindo também elementos imbricados em cada um dos processos criativos experimentados. A partir de uma consulta ao material disponível na plataforma issuu, pode-se perceber que na maioria dos casos são utilizados algarismos, sendo também empregadas palavras ou até mesmo grafismos, como é o caso da recibo █, a 13a edição produzida entre Recife, Salvador e São Paulo, em 2013. No entanto, a adoção destes elementos numéricos refuta a lógica de identificação temporal e linear, comumente utilizada para editoriais periódicos. Não encontramos a recibo 01, recibo 02, recibo 03, e assim por diante. Antes, o que verifica-se é uma forma criativa de lidar com a numeração, suscitando mais estranheza do que identificação imediata de uma cronologia das edições.

Os algarismos somados ao nome recibo configuram em certos casos uma operação aritmética – como no quarto número, recibo07+9, de 2009 –, ou podem evidenciar a adoção de uma escala ou código numérico – como em recibo 34º, sétima edição, produzida em 2011. Este procedimento acaba por estimular o leitor a investigar a lógica por detrás do emprego de cada um dos algarismos, atentando para as especificidades de cada edição, reconhecendo em sua lógica e estrutura internas, bem como em seu processo de criação e produção, a razão de ser de seu título.

No caso de recibo07+9, por exemplo, Traplev apresenta a seguinte descrição, retirada da página dedicada à revista na plataforma issuu:


recibo07+9
O quarto volume chamado recibo07+9, começou a ser produzido em 2007 e ficou sem ser finalizado até meados de maio de 2009, quando se retomou a produção/edição, na ocasião do Ciclo de Discussão sobre Práticas Artísticas e através da parceria com o Museu Hassis e a Fundação Cultural Badesc de Florianópolis possibilitou-se a impressão de uma centena de exemplares.
Com 30 páginas tamanho a4 em preto e branco, recibo07+9, não desenvolveu um tema central e apresenta discussões e documentações em torno de práticas curatoriais e espaços de artistas, performance, fotografia, contos e intervenções específicas. Foi lançada em agosto de 2009 em Florianópolis com 100 exemplares e distribuída com re-edição de + 40 cópias no Rio de Janeiro e São Paulo.


A partir dos dados fornecidos pelo editor, pode-se imaginar que o adendo 07+9 ao nome recibo, esteja associado ao intervalo temporal decorrido entre o início de sua produção, no ano de 2007, e posterior retomada para finalização, em 2009. Os algarismos, associados por adição, nos remetem à sobreposição de tempos e possíveis percalços experimentados neste processo, convidando o leitor à especulação imaginativa sobre causas e efeitos dessa lacuna temporal.

Ao conduzir a análise por esse viés, é também curioso perceber como a empreitada da quarta edição, recibo07+9, tem sua conclusão possível na ocasião de um Ciclo de Discussões em torno de práticas artísticas, somando-se o apoio institucional, que viabilizou a impressão e publicação deste número.

A análise das circunstâncias que tornaram possíveis a publicação e distribuição de cada uma das edições de recibo, é um elemento importante para compreensão de sua construção, periodicidade e tiragem, bem como de suas variações de formato, número de páginas, tipo de impressão, etc. Ao empreender um estudo dos números disponíveis na plataforma issuu, fica evidente que trata-se de um projeto editorial em estreita sintonia com a trajetória e postura profissional de Traplev, que articula em sua produção os papéis de artista e editor.

Os primeiros números de recibo foram viabilizados pela participação de Traplev em residências e projetos artísticos, como no caso do Programa de Residência El Basilisco Avellaneda, em Buenos Aires, Argentina, realizado em 2006. Nesta ocasião, recibo, em sua segunda edição, teve uma pequena tiragem, de apenas 40 exemplares, e sua distribuição foi restrita às cidades de Buenos Aires e São Paulo . Trata-se de uma publicação com pequeno número de páginas, impressa em preto e branco, com aspecto bem próximo ao método de reprodução xerográfico.

Posteriormente, em 2011, recibo foi contemplado pelo Programa Cultura e Pensamento – Seleção Pública e Distribuição de Revistas Culturais, programa nacional do Ministério da Cultura, que visava o estímulo à reflexão e crítica cultural. A seis edições seguintes, viabilizadas pelo Programa, tiveram formato, papel, número de páginas e tipo de impressão idênticos entre si, porém distintos das edições anteriores. Isto porque os parâmetros para produção gráfica foram formatados e pré-estabelecidos na estruturação do próprio Programa Cultura e Pensamento. Com periodicidade bimestral e grande tiragens, de 10.000 exemplares, recibo pode então alcançar uma distribuição e circulação no território nacional, antes inviáveis para sua estrutura produtiva. Este objetivo estava de acordo com as metas do Programa, que visava estimular a criação de publicações culturais permanentes, de alcance nacional, não apenas em sua distribuição, mas também em seu conteúdo.

Este jogo contínuo, articulado por diferentes circunstâncias que viabilizaram cada um dos números de recibo, pode ser observado desde a construção dos títulos, até sua estruturação física, editorial e conceitual. Influenciando também as dinâmicas de distribuição e circulação, a natureza aberta à experimentação artística pode ser encarada como característica fundamental desta publicação. Formato, número de páginas, técnicas de impressão, encadernação e acabamento, bem como as proposições disparadoras das dinâmicas de produção e edição de seus conteúdos, são encarados como territórios disponíveis à invenção, extrapolando parâmetros que comumente definem o escopo de um periódico. Na esteira de proposições artísticas que se debruçam sobre meios e formatos impressos e editoriais, recibo nos surpreende continuamente, renovando também as potencialidades de análise e reflexão críticas. Configura assim um instigante estudo de caso sobre a inserção das artes gráficas no contexto brasileiro contemporâneo das artes visuais.
recibo: uma revista por ocasião
Resenha de Clarice Gontijo Lacerda produzida para a disciplina Pensamento Impresso, do professor Dr. Amir Brito, no programa de Pós Graduação da Escola de Belas Artes da Universidade Federal de Minas Gerais.
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